Essa foto eu tunguei do site da companhia e não sei a quem devo atribuir o crédito. Se alguém souber… por favor…
“O ARTISTA É SEMPRE UM SERVIDOR”.
“O artista que não tenta buscar a verdade absoluta, que ignora os objetivos universais em nome de coisas secundárias, não passa de um oportunista. O trabalho de um artista só se justifica quando é crucial para a sua vida: quando não é uma ocupação passageira, mas sim a única forma de existência para o seu ‘eu’ reprodutor.”
Esses são trechos extraídos do livro “Esculpir o Tempo” do cineasta russo Andrei Tarkovski. E eu tenho a cara de pau de tomá-los emprestados, neste momento, sem sua concessão, óbvio, enquanto não encontro melhores palavras pra falar sobre a grandiosa Cia Hiato, em particular sobre seu último trabalho. O Jardim.
Mas antes de falar especificamente sobre o trabalho, falo um pouco da companhia e as impressões que me causam.
Hiato é uma companhia relativamente nova, formada por jovens que entenderam perfeitamente a lição do mestre Tarkovski, no meu ponto de vista.
Nem sei se eles tiveram acesso a essas suas palavras, pelo menos, quando se propuseram montar a companhia. E nem sei se realmente tiveram algo a aprender, e isto é o que menos importa neste contexto, porque, creio eu, que um artista não é um produto, não se fabrica, não se pode formá-lo, como é o caso do ator, diretor, dramaturgo e seus similares. A arte no seu âmago, não se ensina e o artista não tem o que “aprender”. Ele é e ponto.
Faço-me entender melhor. Um ator, diretor, escritor, desenhista, músico e o que quer que seja, pode-se ensinar, “adestrar”, mas um artista não.
Existem diversas escolas de formação para as profissões citadas, mas não existe escola que crie um artista. O ser já nasce assim, suponho. É um estado de espírito e desde muito cedo, de alguma maneira, ele percebe que tem uma “missão”. A missão de servir, de transformar, sem esperar nada em troca como um legítimo franciscano, que abre mão de sua vida, por opção, para se dedicar ao outro.
Tarkovski acertou na mosca dizendo que o artista é um servidor. (Notem que insisto nisso o tempo todo e insistirei até o final desse texto.) Ele está aqui para servir e nem sei se ele tem plena consciência disto. O artista não julga, não compara, não se sente especial, apenas é e apenas faz. E sua arte é proveniente, dentre tantas outras coisas, da sua inquietação, da sua crença utópica?... Ou não?... De transformação.
Assim entendo a arte e não entendo, porque nós “artistas”-operários nos sentimos tão especiais e diferentes com as realizações dos nossos trabalhos.
E sentir-se “especial” tem um pouco a ver apenas com os profissionais da “arte”, aqueles que não são necessariamente artistas, pois apenas exercem seu ofício, cumprindo-o como o dever de casa e muitas vezes muito bem cumprido. Eles apenas nos fazem rir ou chorar e nada mais além disto. E não estou dizendo que isto não é bom, apenas comparando para me fazer compreendido.
Entendam, não estamos fazendo nada demais. Não estamos fazendo mais do que nossas obrigações. É isso que tem que ficar claro. Não somos especiais.
O artista renunciou teu ego, se é que um dia já teve. Apenas serve o próximo. Não entendo a arrogância de alguns e neste alguns e também sobre tudo o que discursei nos parágrafos finais desta primeira parte, obviamente, não me excluo disto, como podem notar. Aliás, respondo apenas por mim. Sou um “ator”.
Mas ao assistir trabalhos como este, entro em conflito, principalmente em relação ao que penso sobre o assunto. Sobre a utopia da arte.
A “arte” infelizmente está elitizada e por isso soa-me utópica.
A CIA
Meu primeiro contato com o trabalho da companhia foi em 2008/2009, não lembro exatamente. Mas lembro que alguns amigos comentavam sobre uma peça em cartaz na praça Roosevelt em São Paulo. Eu tava meio sem ânimo pra assistir teatro e qualquer outra coisa. Então me disseram pra ir ver “Cachorro Morto”. Fui sem expectativa nenhuma, ainda mais quando soube sobre o que se tratava. Uma investigação sobre portadores da Síndrome de Asperger, que é um nível mais baixo de autismo, superficialmente falando. O tema é interessante, pensei. Mas pensei também: Lá vem mais um grupo querendo falar de coisas das quais não tem a mínima noção.
Caralho! Estrepei-me quando sai da sala. Fiquei pasmo. Pois eles tinham propriedade total sobre o assunto e o tratavam de uma maneira muito delicada, peculiar e respeitosa. Toma bobão! Voltei pra casa em silêncio, pensando muito naquilo. Recomendei a amigos e os que foram partilharam da mesma opinião.
No ano seguinte, ouvia algumas pessoas falando sobre o tal “Escuro”, quando só depois me dei conta de que era a mesma companhia de Cachorro Morto. Resolvi assistir. Era a última semana lá no TUSP. E o mote desta vez era “o campeonato de natação de cegos, surdos e mudos da cidade de Arujá.” O que? – Pensei de novo.
- “Caralho, como penso. E como falo caralho”.
A peça acabou e mal consegui me levantar da cadeira. Tremia. Fui embora com a sensação de que tinha acabado de assistir um dos melhores trabalhos dos últimos tempos, se não, o melhor. E o melhor não é em comparação a nenhum outro. É o melhor pra minha pessoa. Que me fez bem e me pegou de um jeito, que... sei lá. Outra pesquisa incrível sobre o assunto. Os atores dominavam a linguagem de surdos e mudos e se não bastasse, de surdos e mudos cegos que é mais foda ainda.
Tudo muito detalhado e limpo. A direção de Leonardo Moreira impecável. Bem cuidada, um acabamento fora do comum. E realmente, os caras não estavam pra brincadeira. O grande respeito e o amplo conhecimento sobre o tema tratado estavam acima de qualquer expectativa mais uma vez. Tanto que no ano seguinte não me espantou nenhum pouco a quantidade de indicações que receberam ao prêmio Shell. Passei o resto do ano falando só sobre o trabalho. Torcendo pra que voltassem e amigos pudessem assistir.
E agora finalmente, consegui assistir O Jardim.
Desde o surgimento desta companhia, é isto que vejo em suas obras. A inquietude de jovens artistas, sem a pretensão de sê-lo.
Eles entendem que o artista é um servidor e por isso nos presenteiam com tanta qualidade humana. A companhia consegue transcender o simples papel do operário “artista”.
Hoje em dia a parada está tão banalizada que aposto que se eu for até o poupa tempo consigo tirar o DRT na hora (documento necessário para a legalização do trabalho do ator, diretor e outros) e ser um ator, diretor. Mas jamais serei um artista.
A Cia Hiato tem andado contra o fluxo. Realizam seus trabalhos muito bem alicerçados com pesquisas instigantes.
O JARDIM, até que enfim.
Após assistir O Jardim, o trabalho mais recente da companhia. Sai sentindo muito bem novamente. Uma sensação de leveza, transformação. Alma lavada.
Um trabalho profundo de investigação da alma humana, nada diferente dos anteriores neste aspecto.
Há muito tempo não me sentia tão especial e tão respeitado.
A direção da peça é mais uma vez certeira porque além de despretensiosamente bem sacada é invisível. Não tem grandes “experimentos”, mas é totalmente inovadora, porque mergulha na questão proposta. É isso que to tentando dizer até agora sobre os trabalhos anteriores. Ela nos serve. Está ao nosso serviço. Não quer ser complexa, apenas clara, o que possibilita o acesso a qualquer tipo de público. Toca a todos. Fala de indivíduos e suas particularidades, mas ao mesmo tempo fala de todos nós. O inconsciente coletivo.
Assim também estão os atores, que gentilmente emprestam seus próprios nomes aos personagens e o mais interessante é que em momento algum os vemos em cena e somente vemos os personagens, pois eles eximem suas vaidades e se entregam ao papel. Estão invisíveis. Não estão preocupados em mostrar o quão talentosos, técnicos etc são. Servem aos seus personagens, que consequentemente estão nos servindo.
Eu que há muito tempo estava desacreditando da função catártica e de transformação da arte, volto agora a ter alguma esperança.
Volto a dizer que contaminamos a arte com o nosso ego e ela, tornou-se utópica, elitizada, incapaz de nos proporcionar qualquer tipo de transformação.
Sai daquela sala sentindo-me grande. Os atores durante os aplausos sorriam singelamente, parecendo que nos agradeciam por termos lhes dado a oportunidade de poder partilhar aquele momento especial com eles.
E com a dedicação que tem ao trabalho, nota-se claramente que cada apresentação é muito especial. O trabalho é especial. Um trabalho sobre “memória” que teve como ponto de partida, a história particular de vida de cada integrante da companhia.
Pareciam extremamente felizes por aquele momento e porque logo em seguida repetiriam a seção. (Fui na semana em que estavam fazendo duas apresentações, uma seguida da outra.)
A genealidade de uma obra de arte é quando a forma é apenas conseqüência da sua verticalidade. A estética acontece por necessidade. Como é o caso deste trabalho muito bem cuidado.
Ideias todos temos. Estamos cheios de referências, mas o mergulho, a verticalidade, parece que temos sempre medo de atingir, pois não sabemos o que pode sair do buraco se este for cavado tão fundo.
A peça nos devolve o sentido à vida.
Voltei pra casa com lágrimas nos olhos, mas muito feliz por ter presenciado um momento como este e me sentido tão respeitado. Foi um presente.
E que fique bem claro, não sou amigo de ninguém da companhia e infelizmente não os conheço pessoalmente. Não sou crítico, escritor e porra nenhuma, mas gosto de expelir palavras em folhas em branco, quando me sinto estimulado a isso. E neste caso...
Não deixem de ver. Só não sei quando e nem onde agora. Pois já cumpriram temporada em SP e agora estão indo pro RJ.
Vida longa à Cia!