Jurema é o nome que dei ao maldito pernilongo que me importunou a noite toda. Nem sei se era homem ou mulher a desgraça, mas achei simpático e principalmente sarcástico chamá-lo assim. Coincidentemente, este é também o nome de uma tia minha. Juro que só me liguei nisso agora. Tava lesado demais pra pensar essas coisas. Faço questão de dizer que não tenho nada contra ela e nem contra o seu nome. Muito pelo contrário. Foi mera coincidência mesmo.
Um zumbido filho da puta na orelha. Igual uma orquestra de cornetas. Tava num sono pesadão, com os olhos pregados. Já devia ta babando e roncando há muito tempo. Quer dizer, não sei se ronco, realmente. Já disseram que sim, mas nunca fui persuadido disto.
Levantei, apertei o interruptor e fiquei imóvel, como um monge tibetano meditando, só observando. Tava obstinado a executá-lo. Os olhos ainda estavam embaçados e ardentes. Fiquei em silêncio absoluto. Só depois de algum tempo consegui ouvi-lo. Zummmmmmmmmmmmmmmmmmmmm... Passei pelo menos, uma meia hora tentando encontrá-lo, só com movimentos aleatórios dos meus olhos supersônicos, mas o malandro se escondia muito bem. Deixem-me justificar melhor. Eu que ainda tava lento, na verdade, por causa do sono.
Ele sabia que eu estava a sua procura e por essa razão se escondia tão bem. Estrategicamente fechei os olhos e abaixei a cabeça. Fingi que tava cochilando, pra tentar ludibriá-lo. O zummmmmmmmmmm passou ao lado da minha orelha. Há há, enganei-o. Agora estava mais próximo ainda e eu podia sentir o vento das suas asas por perto. Mantive a mesma estratégia do cochilo por um tempo. O toque de corneta enfraqueceu e senti quando ele pousou em um dos meus ombros. Antes de picar-me espalmei a mão, alongando bem os 5 grandes dedos que a preenche e bati com toda a força, onde a espécie tinha se aconchegado.
Mantive a mão pressionada no ombro por um tempo. Quis ser bem cruel. Torci-a e a retorci várias vezes. Lentamente a levantei e quando verifiquei, a palma estava completamente limpa. Só meu ombro muito vermelho, por causa do forte tapa que me dei. Ardeu, pacas.
Não é possível, pensei. Esse filho de Pernalonga não pode ser mais ágil do que eu, que já passei por diversos treinamentos ninjas, incluindo um de pegar insetos com hashis que fiz com o seo Miagy, aquele do Karatê Kid, em 1989, quando ele ainda era vivo.
Em seguida ouvi um zummm zummm zummm. Era ele. Sobrevoando um pouco acima da minha cabeça, distante pra não tomar outro tapa e rindo da minha cara. Fiquei emputecido com isso. Acorda-me a tantas da madruga e ainda fica tirando uma onda comigo? Vá plantar coquinho, sei lá.
Esta foi a primeira vez que nos encaramos frente a frente. O bicho era anormal de grande. Devia ter uns 30 cm de comprimento. Gigantesco. Nunca tinha visto nada igual. Assustei-me, mas não o deixei perceber isso e fiz uma cara de mau pra ele, que com certeza o deve ter congelado de medo. Mexeu com o cara errado, balbuciei.
Levantei, abri o guarda-roupa e procurei minha máscara de mergulho e meu snorkel pra me sentir bem protegido. Corri até o banheiro e peguei a latinha de baygon mata baratas que comprei uma vez pra proteger a Diva contra invasões de baratas cascudas; e me pus em posição de batalha. Agora estava mascarado e armado. Declarei guerra.
Voltei pro quarto ligadão e fiquei atento olhando por todos os cantos e nada. Nenhum barulho. Comecei a procurá-lo(a) por todas as partes. Nada também. Ele tava afim de brincar. Eu não.
Desisti da euforia e preferi voltar à primeira estratégia. Sentei-me na cama, silenciei e esperei. 30 min depois, quando eu já tava quase capotando novamente o zummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm. Ra, rá, pensei. Virei a latinha de baygon na sua direção. Vi a cara de espanto que fez. Sentiu-se encurralado. Recompus a cara de mau, agora escondida atrás da máscara e apertei sem dó. O morfético conseguiu se esquivar do primeiro jato e riu escrachadamente mais uma vez. Zummmm, zummm, zummmm.
Como venho treinando airsoft há algum tempo, sei muito bem lidar com uma metralhadora e fiz aquela latinha virar isso. Certeza que ele não contava com essa minha nova habilidade. Sempre tenho truques escondidos nas mangas. Sou bem treinado.
Rajadas e rajadas daquele aerosol foram disparadas. Não acertei nenhuma em cheio, ele era um bocado esperto também, mas eu tava convicto de que em algum momento ele ficaria zonzo com aquele monte de veneno espalhado pelo ar do quarto. Eu já tava meio grogue, mesmo protegido pela máscara e o snorkel.
Quinze minutos depois ouvi o zum, intervalado, como o do riso, só que um pouco mais sufocado e agudo. Levantei e segui o barulho. Lá estava ele com a barriga pra cima tossindo feito um gambá. Tava pálido. Vi seus olhos se estatelarem quando me viu. Ele tentou rastejar pra um lugar seguro, mas me apressei e meti um dedo em uma das suas asas. Ta vendo? Perguntei. Você não é tão esperto assim. Os tiros não precisam ser certeiros, pois são tão potentes que os rastros deles foram capazes de te derrubar. Certeza que ele entendeu tudo o que disse, afinal deve ter nascido no Brasil.
Ele se esforçou pra sair, mas não deixei e fiz força contra, arrancando a asa, onde meu dedo tava apoiado. Ouvi um abafado grito de ai. Sorri sarcasticamente, porque agora poderia me vingar. Não ia matá-lo sem vê-lo sofrer antes. Várias vezes apontei-lhe o baygon, deixando-o completamente em pânico.
Neste momento queria apenas torturá-lo pra me vingar da tortura que passei tentando pregar os olhos e rolando pra lá e pra cá por causa do calor absurdo e da sua corneta ensurdecedora.
Com o dedo mindinho fiz cócegas na sua barriga. Já tinha ouvido dizer que pernilongos gigantes sentem cócegas e não tem tortura pior pra eles. O coitado tava tão grogue que nem tinha mais forças pra rir. Na seqüência segurei em uma das suas perninhas e comecei a esticá-la. Ele pediu pelo amor de Deus pra não arrancá-la. Parei. Pensei. Não arranquei-a, mas puxei até o limite e dei uma boa mordida no seu pé.
Rá, rá. Faça mais corneta, pedi. Ele não respondeu e me encarou. Alguma coisa aconteceu. Ficou estático ali, me encarando firmemente, com um olhar de piedade talvez. Aquilo me comoveu. Ele sacou que ando com a sensibilidade aguçada e que seria incapaz de lhe tirar a vida. Soltei-o.
Fizemos um longo silêncio. Sai e fui buscar um esparadrapo pra remendar o pedaço da asa que tinha arrancado. Abri as janelas pro veneno sair, abanei todo o ar e correndo lhe trouxe um copo com água. Ele bebeu e começou a melhorar. Ficou me olhando novamente e sem dizer nada apontei-lhe a janela, antes que mudasse de idéia e o prendesse novamente.
Com muita dificuldade o gigante pernilongo se levantou e silenciosamente começou a bater as asas. Tava voando todo torto, meio manco. Coloquei um pequeno pedaço de esparadrapo, quase imperceptível, mas mesmo assim devia pesar muito.
Ao se aproximar da janela, ele se virou e encarou-me mais uma vez, segurando uma lágrima e acenou. Partiu, sem fazer nenhum zummmmm. Mesmo escuro consegui vê-lo tomar distância. As luzes da cidade me permitiam isso. Elas brilhavam mais nesta noite por causa da chuva que caia. Fiquei preocupado. Não sabia se sobreviveria por muito tempo naquele estado, mas pelo menos tava livre pra picar quem quisesse agora. Meu último dizer foi: “Võe em paz Jurema.”