terça-feira, setembro 07, 2010

POPEYE

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Entre as duas casas ao fundo o pé de amora. A minha é a casa da esquerda. E o enorme pasto da fazenda.

I

As mães dos meus amigos não gostavam que eles brincassem comigo. Elas não iam muito com a minha fuça. Diziam pros seus filhos o tempo todo que eu me tornaria bandido quando crescesse. Não entendia o porquê.

Ta certo que não fui nenhum santo. Vivia quebrando os vidros das janelas das suas belas casas, riscando seus carros seminovos, invadindo construções pra fazer a sede da minha turma, que não passava nunca de quatro caboclos e por ai vai. Quando enjoava do local que eu tomava como sede, eu o quebrava todo aos pontapés pra melhorar a potência dos meus chutes. Eu já era lutador de caratê nessa época. Essa também foi minha a primeira encrenca com a polícia, que um dia me pegou na porta de casa. Dois carros cheios deles me fecharam no exato momento em que eu ia entrar com a bike na garagem. Conto tudo melhor num próximo conto.

Isso não era indício de que eu viraria marginal, acredito. Tava querendo ficar forte. Já sentia talvez que teria que aprender a me virar sozinho desde cedo. Andava todo maltrapilho, mas eram as roupas que minha mãe tinha condição de me dar naquela época. Tudo isto também não era nada anormal pra um moleque da minha idade crescido em vila. Na minha cabeça eu só tava me divertindo. E era só isso que eu queria.

Apesar de ter apanhando pra cacete da minha coroa e passado uma boa parte da infância trancado num quarto, eu gostei dessa época. E afirmo categoricamente que se eu tivesse controle sobre o tempo é pra lá que me transportaria.

Eu ficava olhando através das grades da janela, com o nariz cheio de ranho escorrendo, a molecada brincar no pasto da fazenda que dava fundos pra minha pequena casa. O sol nascia e morria sempre aos meus olhos. Não perdia um instante se quer deste fenômeno.

Esta fazenda era conhecida por causa da lenda de um boi que falou um dia com seu patrão. Foi numa sexta-feira santa. O patrão queria que ele fosse trabalhar e ele respondeu que não trabalharia porque aquele era um dia de folga obrigatória para todo ser vivo. E tem também a lenda da pequena garota que praticava hipismo todo fim de tarde lá e que nunca cresceu. Essa eu conheci mesmo. Fazenda Rio das Pedras em Barão Geraldo, distrito de Campinas. Conhecida como a fazenda do “Boi falou”.

Não culpo minha velha por ter me criado dessa forma. Ela tinha fé de que assim pudesse me tornar alguém. Alguém??? Ela foi criada desse jeito, ou até pior e essa era a única referência que tinha de educação. Claro, nada justifica suas atitudes, mas é foda julgar, porque é difícil entender. A parada é outra. Sacou?

Hoje entendo que é por isso que queria quebrar tudo. Quando saia em liberdade, achava que aquela era a melhor forma de aproveitá-la. Não queria mais voltar pro lar. Minha casa na minha cabeça era um exílio. Sempre que eu conseguia dar uma escapada voltava tarde e a aquela altura do campeonato minha mãe já tava descabelada de preocupação e com a varinha do pé de amora na mão. Ela fazia aulas de pintura e era com as marcas que a varinha deixava nas minhas pernas que ela mais gostava de praticar seus desenhos. Sangrava pra cacete.

Também tive muitos problemas no colégio, principalmente com brigas. Fui expulso e a porra toda. Chegou uma hora em que as escolas da região não aceitavam mais a minha matrícula. Eu já tava com má fama no bairro. Tive que me mudar pra uma escola num outro bairro muito distante. Um perueiro levava a gente, mas depois de um tempo também fui expulso da perua, mas na verdade eu só aprontei porque queria ir de ônibus urbano pra poder fazer o que me desse na telha.

Não sei muito sobre os meus primeiros anos de vida. Nunca vi fotos, nem nada. Lembro que bem pirralho adorava assistir Popeye numa velha TV em branco e preto. Morava em Lorena com uma senhora que eu chamava de Vó Geni. Minha mãe vinha me buscar às vezes. Chegava de charrete. Esse era um transporte muito comum naquela cidade naquela época.

Eu me escondia atrás da televisão achando que o Popeye estivesse por perto e não fosse me deixar ser levado por aquela estranha que eu nunca via. Pra mim era a bruxa inimiga do Popeye. Demorei pra entender que era a minha mãe, mesmo depois de algum tempo já morando com ela. Essa história é toda bagunçada na minha cabeça.


II

Minha mãe se casou com um japa e até ela ir acertando a vida com a família dele, fiquei feito bolinha de pingue-pongue pra lá e pra cá. Era inaceitável, uma mulher já com um filho entrar na família japoranga. Eu tive que morar com uma porrada de gente, entre Taubaté, Lorena e Campinas. Amigos, tios, estranhos etc. Até hoje não sei quem foi a Vó Geni. Aliás “joga pedra na Geni, lá, lá, lá, lá, lá, lá” foi a primeira do Chico Buarque que conheci. Tenho saudade. Nunca mais soube dela. Sei que não era a mãe da minha mãe, porque a velha morreu quando ela tinha onze anos e também não era a mãe do meu pai, porque a conheci há uns quatro anos atrás. É uma senhora toda esclerosada que não fala nada com nada e diz se lembrar de quando nasci. Estranho.

Ela perdeu dois filhos assassinados na porta de casa e uma filha infectada pelo vírus HIV, numa época ainda que pouco se sabia sobre a doença. Ou seja, os únicos três filhos que teve, morreram. Nunca vi a lata do meu pai. É bem compreensível toda a esclerose da pobre senhora.

Pra chegar salvo até as linhas deste texto tive que sobreviver e pra isso tive que aprender a me proteger bem cedo. Porque também bem cedo sai de casa. Mal tinha acabado de chegar.

Fiquei bom de briga. Sempre enfrentei vários malucos de uma vez, mesmo levando uma bela surra, às vezes. Não tinha medo e nem tenho. Encaro qualquer um que bancar de valente pra cima de mim. Não arrumo encrenca com ninguém, mas rezo pra não arrumarem comigo, porque daí... Putz, deixa pra lá. Cachorro que late au, au...

Porém, o medo que eu tinha de ser abandonado mais uma vez, ou ficar trancado no quarto me privando da liberdade, era maior do que toda a minha valentia. Esse troço nunca consegui superar.

III

Uma vez jogando futebol no campinho, a mãe de um dos meus amigos apareceu e chamou todo o time pra comer brigadeiro de panela que ela havia acabado de preparar.

O jogo acabou.

Sorridentes e empolgados todos começaram adentrar a sua casa. Fui o último. Ela me barrou ainda no portão. Em tom baixo, pros outros moleques não ouvirem disse que nunca mais queria me ver ali e nem brincando com o filho dela. Fiquei assustado com o jeito ameaçador da mulher e aquilo nunca mais saiu da minha cabeça. Não vi mais nenhum dos meus amigos depois disso. Fui procurar novos amigos em outra área. O nosso time se desfez. Nunca mais joguei futebol. Graças a Deus.

Eu não tinha nem 14 anos ainda e já tava na estrada pedindo carona pra poder estudar num colégio que ficava em outra cidade distante 50 km da minha. Ia e voltava todos os dias assim, até que resolvi me mudar pra casa dos meus padrinhos na mesma cidade. Depois daí não parei mais e nem voltei pra casa. Não parei mais de pedir carona, conhecer os lugares, as pessoas. Não parei mais de fugir. De ir atrás dos troços que sempre acreditei.

Desde aquela cena do brigadeiro de panela, tive medo de que cenas como essa se repetissem outras vezes. Morria de medo das pessoas. Não sabia reagir. Na verdade, não sei ainda. O medo em menor proporção me acompanha até os dias atuais. É foda, porque a conseqüência disto é o meu instinto protetor animalesco. Enfim. Não tenho medo de porra nenhuma Sempre estive a frente das situações mais perigosas em viagens e aventuras com os amigos, mas... mas...

IV

Não me tornei bandido. Hoje moro numa casa no campo bem ampla. Tenho cachorros e orangotangos. Empregados e cozinheiros. Eu trabalho na roça colhendo tomate no sol à pino, com um grande chapéu mexicano. Ah, às vezes escrevo contos. E sou um tremendo de um mentiroso. É só aqui que posso viajar nas minhas idéias do jeito que bem entendo. Qualquer semelhança com a realidade é mera ficção.

V

Este é um jeito teórico divertido de sobreviver e continuar rindo da vida.

7 comentários:

Farah Serra disse...

Será que eu também conheço esta garota que nunca cresceu?!

Anônimo disse...

gostei do texto , cara

abraço

diniz gonçalves júnior

PANKADA disse...

Vixe, acho que vc não conhece Azenha. É bem difícil.

Camilo disse...

Olá, Pankada. Li seu texto todo e valeu a pena, fiz minha sessão de análise com você hoje. Quem não tem seus problemas de rejeição. Essa mulher que lhe negou o brigadeiro, talvez estivesse fugindo também. Mas ela é só uma mulher e você é muito mais você, amigo. Gosto de como escreve, direto ao coração e mente. Um soco na lógica, no marasmo. Gostei muito.
Abraço.

PANKADA disse...

Valeu Camilo. Engraçado isso, porque gosto muito do que escreve também, só não tenho esse talento todo com os comentários. Abração amigo!

Talita disse...

Revelador! Tua cara, tua alma. Estranho. Gosto de usar essa palavra tb. Te vejo no seu próximo conto. Bj Talita

Unknown disse...

Você sabia que por muitos anos o apelido do Leandro era Popeye??? Não sei não, tô achando que ele é mesmo filho do Adão, pode ser fruto de alguma Pankada sua...rsrss