São quase meia-noite. Penso: As palavras me tem fugido.
Penso em tantas coisas mais, mas guardo estes obscenos pensamentos para depois entregá-los embalados em uma caixa 13X11 com um laço amarelo do tamanho dos cadarços da minha botina marrom.
Penso:
.
O que pensou você?
Só uma pequena manta de lã quadriculada tenta me salvar do vento gelado que entra por brechas da janela de frente pra uma avenida solitária durante a madrugada, onde o sol tem sempre o atrevimento de riscar os tacos mal encerados do chão de um quarto inóspito com o chegar da manhã.
Onde estão as flores? É primavera. Foram embora os tímidos raios do sol do outono. Os mais belos.
Penso em Londres. Penso em franco-brasileiras.
Pequenos flocos de neve devem congelar uma dessas pequenas francesas, de olhos azuis, perdida em alguma estrada sobre calçadas de ladrilhos com poste de luzes coloridas à east da cidade, do lado oposto de Notthingham.
Já vi no mapa Amèlie em sua casa tentando montar um imenso quebra-cabeça e desenhando flores com giz de cera, em imensas folhas de papéis, num bairro de infinitas casas da mesma cor, com o mesmo cheiro e textura, habitadas por eslovacos banguelos e imensos camundongos devoradores de tomate.
Corra Amèlie, corra... Pratique defesa pessoal. Meta-lhe os dedos em todos os olhos que ele tiver, mas evite os olhos do cu, senão seus dedos nunca mais terão esse cheiro parisiense e ainda por cima poderão cair.
É primavera aqui. Mas onde estão as flores? Estou me afogando numa forte chuva torrencial que o inverno deixou.
O cometa Halley riscou o céu, eu vi. Já tive lunetas, um planeta, fui amigo do Pequeno Príncipe. Tenho cinco dobermans que dormem no tapete poliéster do meu quarto. Tenho alguns rotweillers e não mais do que dez pitbuls.
Tenho sonhos e vassouras. Tenho até amigos que já viveram em Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Plutão.
Ah, também tenho me alimentado com peixe fresco comprado a preço de banana em imensos mercadões de cereais. Eu como filé de pescada e por lá comem-se deliciosos salmões assados com legumes.
Nada me deixa bravo, mas odeio mentirosos.
Não consigo mentir enquanto escrevo.
Ah, o teu sorriso. Como poderia não falar dele?
Mas e as flores? É primavera, não é?
Estão escondendo o prédio de alumínio que eu via aqui da minha janela e que o Minduim, pobre macaco, não tirava os olhos. Mas o que tem a ver o cu com as calças?
Estão escondendo tudo. Não ouço mais aquelas canções antigas de Buenos Aires. A manivela da minha vitrola, parou de rodar.
Avisto uma tesoura em sua mão e um olhar tenso de frente pro espelho.
Uma almofada recebe pedaços de finos fios de cabelo. Um a um. Enquanto em sua testa uma espécie de arco-íris de cabeça pra baixo vai surgindo. Todos da mesma cor.
E lembro sempre de alguém quando o caminhão de gás passa tocando aquela repetitiva música infernal de Beethoven, que para os meus ouvidos soam docemente.
E quando a lua aparece com o seu brilho eu me jogo sobre cartões postais perfumados, de ônibus vermelhos de dois andares, ou de típicas cabines telefônicas londrinas.
E é com seu guarda-chuva cor-de-rosa que ela coloca correspondências numa caixa dos correios bem ao lado de onde mora. Pisa em nuvens. E sussurra canções francesas. Aquelas mesmo que mais tenho gostado de ouvir. Sonho com isso todas as noites.
É primavera, não é?
Algum dia será. Todos os dias são. E serão!
Pra mim...
Pra você...
E mais uma vez o espaço em branco e sem ponto nenhum. Desta vez é proposital.
Por que?