quinta-feira, março 24, 2011

HORÁRIO NOBRE

Acho que escrevi essa peça entre 2006 e 2007. Tentei montá-la algumas vezes por aqui e nunca deu muito certo. Tinha desistido, porque já não gostava mais do texto (isso sempre acontece depois de um tempo.) Dai dois malucos lá de Piracicaba leram e gostaram muito e pediram autorização pra montarem. Cheios de vontade e determinação fizeram a produção e me chamaram pra dirigir. Óbvio que aceitei de bom grado. Demos uma ripa, pois tínhamos só um mês e os finais de semana pra ensaiar. Foi roquenrol, por causa do pouco tempo. O último ensaio ficamos das quatro da tarde de sexta até as oito da manhã do sábado direto, com pequenos intervalos pra comer um pão com manteiga na padoca. E neste sábado depois da loucura toda estréia lá em Piracicaba.

horarionobre_cartaz

E confesso que gostei do resultado e to feliz com o trampo deles. Óbvio, tem muito pela frente ainda.

O espaço é bacana, tem-se a sensação de estar na casa dos personagens. Um moquifo. Enfim. Segue ai o texto que escrevi pro programa. E quem estiver por Piracicaba, apareça.

HORÁRIO NOBRE

Eu morava numa espelunca do tamanho de uma caixa de sapato perto do minhocão da Amaral Gurgel. E todos os dias eu passava por lá pra ir pra algum ensaio do qual não me lembro agora. Eu era um recém chegado à cidade de São Paulo.

Junto com as minhas caminhadas por ali me vinham uma mistura de medo e curiosidade. Ainda não sabia exatamente onde eu tava pisando. Mas aquela gente deitada sobre caixas de papelão de baixo de carrinhos cheios de sucatas, me inquietavam. Tinha visto aquilo raras vezes através das janelas dos ônibus em algumas rápidas passagens pela cidade, ou nos telejornais, mas nunca tinha presenciado de perto, pelo menos não daquele jeito. Às vezes sentia-me parte daquilo, ou até culpado por aquilo. Era estranho.

Em algumas madrugadas eu sentava em algum lugar discreto e ficava observando um pouco a vida daquela gente, sabendo que jamais saberia de verdade o que se passa pela cabeça deles. Mas minha teimosia pedia-me pra ficar. Talvez, vendo-me ali mais próximo, conseguia de um jeito ou de outro apaziguar aquela angustiante sensação de culpa.

Voltava pra casa e imediatamente procurava alguma distração. Ligava uma pequena TV velha e ficava zapeando seus canais. Em poucos minutos toda aquela pequena experiência parecia se diluir, tomado pelas atrações televisivas.

Perdia noites de sono zapeando-a atrás de algo que desse um basta na minha angústia. Horas depois eu já nem sabia porque tinha permanecido tanto tempo acordado.

Pelas ruas em alguns dos meus passeios notava todo mundo vestido da mesma forma, com o mesmo estilo, assunto etc e só então me dava conta que o estilo delas etc era exatamente igual ao que eu via em algum programa ou qualquer outra coisa nas noites de insônia diante da pequena TV.

Uma vez, antes de virar uma das esquinas que me levavam ao minhocão ouvi gritos que me lembravam comemorações. Fiquei assustado, não sabia se devia seguir em frente, mas ainda movido pela imensa curiosidade de um sujeito bicho do mato entre prédios, segui obstinadamente e foi então que vi mais adiante sob o imenso viaduto um aglomerado de pessoas atônitas e vibrantes. Ao me aproximar e guiado pelo o olhar fixo de cada uma delas, avistei o centro das suas atenções. Uma pequena TV ligada, não sei como, naquele viaduto transmitia uma partida de futebol. Acho que nunca os tinha visto tão felizes. Nunca mais me saiu da cabeça.

Como um negócio daquele tamanho consegue roubar tanta a atenção daquela gente? Ainda dita a moda do momento, escolhe o político da vez, rouba o nosso tempo, persuade-nos como quiser, nos entrete, nos faz rir e chorar e por ai vai.

Não conseguia parar de pensar nessas possibilidades e foi ai que resolvi despejar tudo isto sobre o papel e nasceu este texto e que recebeu o título meses depois de estar pronto. Horário Nobre.

Ele narra o conflito entre dois personagens que se acentua quando um deles aparece com uma pequena velha TV em seu pequeno barraco e depois descobre que não funciona. E daí a aventura começa. E divido todos aqueles dias de tormento com vocês.

Eu, Charles Mariano, Bruno Agulhari, Antonio Chapéu e o Ponto de Cultura Garapa temos o prazer de lhes acolher em nosso lar. Sejam bem vindos ao nosso mundo. O mundo de vocês.

Boa peça a todos!

Paulinho Faria

Autor e diretor

Um comentário:

Camilo Irineu Quartarollo disse...

Vi no ponto de cultura Garapa qui em Pira.
O Charles comentou de eu escrever sobre a peça, mas ainda estou um pouco atônito pelo realismo da mesma. É assim que ocorre na miséria humana (Deus queira sejamos poupados). Deve dar um medinho na plateia ou horror, ou aversão, aqueles dois cidadãos neurotizados pela miséria. É para fazer pensar ou não pensar? Pensar, quem se acostuma com isso? Mostra a face sórdida do capitalismo de competição, a TV era a única fantasia, o único elo com o mundo e ela estava desligada, quebrada.
Os diálogos muitos bons e próprios do gênero. Como os conheço e lhes tenho amizade, me preocupou o desgaste em cena, imagine-se na vida real todos os dias, espero que esta não seja a rotina do Pankada. Digo-lhes que, apesar de roupas limpas e engomadas, quem é que não passou por situações parecidas, por brigas em família ou enfrentou coisas do tipo, onde a loucura prevalece, o mundo não é uma redoma, a gente cria isso na cabeça da gente (afinal, a gente precisa sonhar), as personagens, como o Rato, sonhava e projetava seus sonhos numa "dona bonita" que nunca terá fora de sua cabeça e muitos, apesar de classe média, não fazem isso também (num machismo de rodinha de amigos e só aí se realizam, porque na realidade, vem o desgaste de uma vivência cotidiana). A personagem do Zé é mais conservadora e veio de um meio melhor que o Rato e o autor (Paulo Faria) fez nele suas experiências creio, este sem pai (ou de pai duvidoso), mãe todos têm, mas a imagem de pai, de disciplina, correção que Zé tinha Rato não tem, Rato só está vivo e pode morrer a qualquer hora por qualquer motivo fútil, já Zé zela por uma vida que sonha, nossa vida na cabeça do Zé talvez seja um sonho, eles não têm o mínimo de higiene.
Não é o gênero que me dá prazer, mas do qual não se pode fugir simplesmente. Questiona às visceras e para os que os acham que podem transformar a sociedade com meias dúzia de palavras, um partido político ou alguns livros de autoajuda isso é uma frustração. Não é dadaísta ou niilista sua peça é realista ao extremo, um choque de realidade social.
Parabéns Bruno, Charles e Paulo (pankada).
Camilo